quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Polícia Militar

Por que é possível desmilitarizar PMs

Proposta ganha adeptos, inclusive na própria polícia. Militarização sugere existência de “inimigo” e de postura bélica — o que nada tem a ver com segurança pública

Por Mauro Donato, no Diário do Centro do Mundo

O grito que anda presente nas ruas assusta leigos, que costumam reagir com a pergunta: “E na hora em que for assaltado, vou chamar quem?”, como se desmilitarizar significasse a extinção de policiamento ou da própria polícia. Não significa. Trata-se apenas de transferir esse “serviço” para uma polícia sem arquitetura militar.

Regida pelo artigo 144 da Constituição federal, a segurança pública destina à polícia civil apenas o poder de investigação e apuração de infrações penais (e levar os casos ao poder judiciário), ficando a cargo da polícia militar o policiamento ostensivo e “preservação da ordem pública”. Isso por si só já é problemático pois, evidentemente, uma polícia lava as mãos tão logo passa o bastão adiante.

Mas o ponto em questão é a cultura e a hierarquia às quais os militares são submetidos em seu treinamento, nos moldes das Forças Armadas. Militares são treinados e preparados para defender o país contra inimigos. É uma postura radicalmente diferente de quem vai lidar com o próprio povo. Nós não estamos em guerra. Sobretudo contra nós mesmos. E uma polícia “contra” o povo só faz sentido em ditaduras. Nós também não estamos em uma, estamos?

“A polícia não pode ser concebida para aniquilar o inimigo. O cidadão que está andando na rua, que está se manifestando, ou mesmo o cidadão que eventualmente está cometendo um crime, não é um inimigo. É um cidadão que tem direitos e esses direitos tem de ser respeitados”, disse Túlio Vianna, professor de Direito Penal na UFMG durante uma aula pública realizada em julho, no vão do Masp. O professor condena ainda a existência do código penal próprio da PM, aplicado para policiais que cometem delitos: “É muito cômodo você ter uma justiça que te julga pelos próprios pares”.

O tema é espinhudo até entre PMs. Um coronel da PM do Rio Grande do Norte entrou com uma representação contra um tenente que se posicionou à favor da desmilitarização, num post em seu perfil no Facebook. Sinal dos tempos, a Associação dos Cabos e Soldados da PM/RN saiu em defesa do tenente: “O Tenente Silva Neto teve o privilégio de em sua carreira militar ter sido soldado e, por isso, tem uma visão ampla dessa questão do militarismo e de suas implicações, hierarquizada na nossa corporação, (…) Por tudo aduzido acima, a Associação dos Cabos e Soldados expressa a sua mais sincera admiração pelo tenente Silva Neto, além de disponibilizar o núcleo jurídico da nossa entidade a fim de ofertar defesa frente à representação apresentada pelo Coronel PM WALTERLER”.

A hierarquia militar é propícia a abusos. Carlos Alberto Da Silva Mello é cabo da polícia em Minas Gerais e favorável à desmilitarização e postou no portal EBC (Empresa Brasil de Comunicação): “Bom dia, sou PM e vejo na desmilitarização o avanço da segurança pública no nosso país. Os coronéis são contra porque eles perderiam o poder ditatorial, acabaria os abusos de autoridade contra os praças, acabaria o corporativismo que existe nas PMs (…) Fim do militarismo, não o fim das polícias e sim (o fim) de um regime autoritário, desumano, arrogante, (…) A sociedade não toma conhecimento do que se passa dentro da PM. Todo cabo, soldado e sargentos são a favor da desmilitarização das PMs. O militarismo é o retrocesso (…) os abusos são constantes dentro dos cursos de formação de soldados.”

O ranço bélico que existe na PM está em superexposição desde junho. A falta de critérios para utilização de armas “não letais”, a gratuidade da violência, a truculência figadal, as táticas de emboscada. A atitude de colocar a tropa de choque, bombas de gás e balas de borracha ao lado de manifestantes já incita a tensão por seu caráter repressor. Em todas as ocasiões em que o exibicionismo da força militar esteve ausente, não houve bagunça, baderna, vandalismo, chamem como quiserem. Não é coincidência. Somado a atitudes autoritárias (e ilegais) como a detenção “para averiguação” que vem ocorrendo sistematicamente, temos um quadro que exige a revisão desse artigo 144 urgentemente.

O que se deseja nem é o desarmamento. Embora Londres possa sempre ser lembrada como exemplo de polícia desarmada, não fechemos os olhos em busca de utopia (mas há dados interessantes a se saber com relação a isso e que podem alimentar sonhos: uma pesquisa interna feita com os policiais britânicos, 82% deles disseram que não queriam passar a portar arma de fogo em serviço, mesmo quando cerca de 50% dos mesmos policiais disseram ter passado por situações que consideraram de “sério risco” nos 3 anos anteriores à pesquisa).

O que se deseja são uma ouvidoria e uma corregedoria minimamente eficientes e atuantes, de modo a pelo menos inibir declarações surreais como o já famoso “Fiz porque quis” proferida por um BOPE em Brasília, ou um alucinado policial sem identificação insultando diversos advogados no meio da rua, ou o sargento Alberto do Choque do RJ que ontem respondeu com um “Não te interessa” ao questionamento da falta de identificação, todos convictos da inconsequência de seus atos (se você não é do Rio de Janeiro, aconselho que acompanhe de perto o que tem se passado lá todas as noites).

É evidente que isso veio à tona desde que os filhos da classe média passaram a ser as vítimas. Na periferia é ancestral e sempre foi ignorado ou menosprezado. Portanto que se aproveite o momento. Os benefícios de uma polícia não militarizada refletiria em toda a sociedade.

Um dos caminhos seria a unificação das policias civil e militar, algo possível apenas através de uma emenda à constituição. Isso não se consegue da noite para o dia, portanto, quanto antes se começar a mexer nesse vespeiro, mais cedo teremos algum avanço. O que não é possível é ficar assistindo reintegrações de posse se tornarem espetáculos de carnificina com requintes de crueldade como vemos hoje. Já deu.
(Outras Palavras)

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Amarildo

Matamos Amarildo


Quando a plateia vibrou com a cena final de Tropa de Elite, ela não percebeu que a escopeta estava voltada para ela

Quando plateia vibrou com a cena final de “Tropa de Elite”, autorizou barbárie. Só não percebeu que escopeta estava voltada para ela

Por Matheus Pichonelli, na Carta Capital

Quando o Capitão Nascimento, com o coturno na garganta do traficante “Baiano”, entregou a escopeta nas mãos do Soldado Mathias e determinou a execução do bandido com um balaço no rosto, as salas de cinema do Brasil vibraram como torcida em final de campeonato. Como em uma arquibancada, houve quem se levantasse e aplaudisse a cena de pé, algo inusitado para uma sessão de cinema. O Brasil que pedia direitos humanos para humanos direitos estava vingado.

José Padilha precisou praticamente desenhar, em Tropa de Elite 2, que aquela escopeta estava voltada, na verdade, para o rosto da plateia. Mas a plateia, em sua sanha punitiva, parecia incapaz de refletir e entender que a tortura, os sacos plásticos e a justiça por determinação própria eram a condenação, e não a redenção, de um país de tragédias cotidianas. Nos dois filmes, todos estavam de alguma forma envolvidos na criminalidade – corruptos e corruptores, produtores e consumidores, eleitos e eleitores – mas só alguns iam para o saco de tortura. As consequências dessa indignação seletiva estavam subentendidas, mas muitos não as captaram: nas camadas superficiais da opinião pública, o apelo a soluções simples é sempre tentador. (Em uma das cenas do segundo filme, Nascimento é aplaudido de pé ao chegar a um restaurante de bacanas após comandar o massacre em um presídio. Padilha mostrava ali que a que violência denunciada em Tropa de Elite não era só caso de policia, mas uma chaga aberta e diariamente cutucada por quem recorre, no discurso ou na ação, a soluções arbitrárias contra um caos legitimado).

É possível que este mesmo Brasil que transformou em heroi um personagem complexo e vacilante como o Capitão Nascimento, personagem interpretado por Wagner Moura, não tenha sequer franzido a testa, na vida real, pelo sumiço do ajudante de pedreiro Amarido de Souza, de 47 anos. Para quem não sabe, Amarildo desapareceu no dia 14 de julho após ser levado para a sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha. Ninguém sabe ninguém viu o que aconteceu desde então (repita-se: em uma unidade PACIFICADORA). Isso porque as câmeras de monitoramento da região, estranhamente, não registraram a movimentação. Segundo um inquérito aberto pela Divisão de Homicídios da Polícia Civil fluminense (e encaminhado ao Ministério Público do Rio), Amarildo, que era epilético, foi torturado, morto e seu corpo, ocultado. Foram indiciados dez policiais militares lotados à época na UPP, entre eles o ex-comandante da unidade, major Edson dos Santos.

Na Justiça, todos terão direito a se defender, e é bom que assim seja. Direito que o ajudante de pedreiro não chegou a vislumbrar – seu erro fatal, segundo a investigação, foi ter se negado a fornecer informações sobre traficantes do morro, a quem supostamente preparava churrascos. Sua versão da história será sempre um mistério: no método de depoimento informal aplicado supostamente pelos PMs – com direito a choques elétricos, de acordo com o inquérito – a verdade dos fatos é a primeira a morrer sufocada.

Amarildo não foi a primeira e fatalmente não será a última vítima. Nem da violência nem do descaso nem da ignorância. Os aplausos da plateia abobada de Tropa de Elite são reforçados todos os dias, inclusive quando o governador diz: “E daí? Antigamente havia muito mais Amarildos do que hoje”. Tanto Amarildo como o governador não são pontos fora da curva. São uma legião, porque são muitos.

No país das indignações seletivas, a aceitação da tortura é a manifestação inequívoca de um estado de guerra e barbárie permanente no qual a convivência humana é simplesmente inviável. No filme 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Stanley Kubrick criou uma alegoria para ilustrar a origem deste estado: quando um grupo de macacos identifica em uma ossada um arsenal de guerra e provoca uma dissidência; com os ossos na mão, passam a agir como base na violência, na coação, na briga pelo território, pelo privilégio, pela dominação de uns pelos outros. É quando os animais se humanizam.

Ao longo dos anos, esta humanidade barbarizada caminhou em direção ao que se chama civilização, em que pese o fato de alguns dos maiores morticínios terem sido praticados nos séculos XX e XXI (a morte por gás sarin não é menos dolorosa que um golpe de machado). Em outros termos, significa que entre um símio e outro há uma regra de conduta, baseada em lei, que impede o uso dessa arma para a imposição da força. Essa lei, em tese, é o que evita o aniquilamento humano. Inevitavelmente, esta cortina frágil é rasgada todos os dias por quem não consegue identificar a humanidade no outro. Voltamos um pouco ao estágio pré-civilizatório toda vez que testemunhamos um crime motivado por ciúmes, por território, por controle, por motivo fútil, por necessidade. Mas, em vez de distribuir ossos e oficializar o aniquilamento, optamos por criar o Estado, a legalidade e armamos a polícia, a detentora do monopólio legítimo da violência. Mais do que ninguém, ela é a força responsável por impedir que os símios espalhados pelo mundo ajam conforme seus instintos – e sejam punidos em casos de infração. Tem as armas para isso.

Quando aplaudimos a tortura policial, no entanto, a mensagem passada aos nossos supostos guardiões é que esta arma pode ser usada como bem entenderem, e não em favor de uma paz possível prevista em lei. É como se a plateia exultante de Tropa de Elite, iguais aos macacos de 2001, dissessem: “danem-se as leis, somos todos neandertais”.

O apelo à tortura como consequência da segurança é, portanto, a confissão e a aceitação de uma incapacidade ancestral. Em vez de segurança, o que ela produz é pânico: aceitamos que a polícia se comporte não como o agente público a nos proteger de símios ensandecidos com ossos na mão, mas exatamente igual aos animais retratados no filme.

Nesses termos, o estado completo de vulnerabilidade está criado. Ontem, mais precisamente em 14 de julho de 2013, foi a vez de Amarildo. Amanhã pode ser eu. Ou você. Enquanto aplaudimos as soluções arbitrárias, que aniquila tanto o bandido como o inocente, é a sorte, e não a lei, o elemento a impedir que um animal armado (fardado ou não) com arma na mão, pelo simples fato de acordar num belo dia de mau humor, coloque nossas cabeças em um saco plástico e nos sufoque até a morte.
(Outras Palavras)

Literalizando

Fêmea: Zigarina, Zigarina, dolorida e linda
Por
Fabiane M. Borges


“Ela queria fugir da Europa, fazer o caminho oposto do resto da civilização. Incivilizar. Involuir. Precarizar. Tornar-se outra coisa”

Por Fabiane Borges
“Há um ditado cigano que diz ‘Vivemos porque
caminhamos’, e outro que se refere à importância
de sua função: ‘Enquanto o cigano nômade
continuar caminhando, o eixo da terra continuará
girando’”.

Valeria Sanchez – “Devir Cigano” 2006

Zigarina é uma italiana que se apaixona em Paris por um músico que precisa voltar para a Transilvânia, por não ter conseguido o visto de permanência na França. Ela parte com uma amiga dois meses depois, atrás dele. Ela o encontra, mas ele não a quer mais. Ela não diz que está grávida. Tudo indica que não quer uma situação de negociação em relação a isso, pois o que importa é a reciprocidade da sua paixão. Daí começa sua saga de ritos de despossessão, já que declara que está com o coração possuído.

Chamo esses ritos de performances, porque uma resolução estética é dada para uma tensão interna, biográfica. Ou seja, existe uma tensão que é desobstruída pelo improviso performático. Essas performances são feitas por ela na busca de dar vazão à dor que sentia diante da impossibilidade do amor.

Performance 1 – Ela vai para a rua durante as comemorações da festa de Herodes, o que mandou cortar a cabeça de João Batista. Ela atravessa a procissão festiva na contramão, atirando-se nos braços das pessoas, gritando e chorando, a louca da festa pagã. Milhares de pessoas nas ruas e ela tão sozinha. A imagem da solidão povoada, da estranheza absoluta, ela própria João Batista, com a cabeça pedente entre ombros desconhecidos.

Performance 2 – Ela vai para uma festa e dança bêbada quebrando pratos. Erotizada, tira a parte de cima do vestido e dança como uma estrangeira dança, com suas botas de couro e vestido negro. Toda europeia, quebra os pratos com vontade, dando sentido para o gesto tradicional do país, o despedaçamento dos vidros. Ela se quebra prato, ela estilhaço e barulho. Sensual e quebradeira. Os pratos que levam a cabeça de João Batista, a sua cabeça, tornando-se cacos. Ela é a mais pagã das pagãs, e a que mais tem fé.

Peformance 3 – Ela abandona sua melhor amiga numa fronteira, parte com uma menina de rua, entra em um devir nômade, decai a uma situação de miséria e dificuldade. Uma criança mendicante — era a sua própria condição. Vira criança e não tem mais nada. A criança diz: Acorde, Acorde. Ela responde: Por favor, não me olhe desse jeito, e tapa os olhos da menina. Zigarina menina, perdida, num pais estrangeiro, mendiga.

Performance 4 – Ela sai de um carro aos gritos, escandalosa e louca, corre para dentro de uma floresta outonal até cair no chão, se abraça no chão e tenta se tapar com folhas secas e barro, tenta se colocar na terra, dentro da terra. Se exaure e por fim desmaia. Ela desfragmentada, querendo o consolo da terra fria, tenta algum pacto. Escandalosa e zonza, Zigarina folhas secas. A Terra como o fim e o princípio, enterrar-se, morrer-se de si. Quer ser outra coisa, quer ser floresta nua, quer se enterrar no chão. A Terra amante e mãe, ela criança e mendiga.

Performance 5 – Vai a uma igreja ortodoxa cristã e faz um rito com velas e leite. É banhada de cima a baixo enquanto passa pelo exorcismo litúrgico e sincrético. Ela está disposta a passar por aquilo, e acredita nos que estão conduzindo o rito. Ela crente, afeita a qualquer fanatismo. Qualquer fanatismo que tire a obsessão do seu peito. É intensa e urgente, ela tem pressa, fanática e demente, ela se entrega, discreta. O mercenário que a levou, não paga pelo rito de cura, ela também acredita nele.

Performance 6 – Ela parte com o mercenário enquanto sua barriga cresce e ela encontra nele um novo amor.

Zigarina, Zigarina, dolorida e linda. Capaz de qualquer coisa. Ela está fodida e mal paga, está arrasada, por isso quer cortar a cabeça, quebrar pratos, virar menina de rua, se enterrar na terra debaixo das folhas secas, fanatizar. A barriga crescendo fruto de um amor tão infeliz parece criar um trato entre ela e a Terra daquele homem. Ela queria viver o multiculturalismo a transmusicalidade, a industrialização ainda precária, a não tão premente tecnologia da Transilvânia? Ela queria fugir da Europa, fazer o caminho oposto do resto da civilização. Incivilizar. Involuir. Precarizar. Tornar-se outra coisa. Ela estava de luto pelo fim do amor, pelo fim das matas, pelo fim das águas, pelo fim da Terra.

Me impressionam esses ritos performáticos irrefletidos e escandalosos de Zigarina, as manifestações da dor e o processo de expurgação da paixão que lhe possuía, que lhe endemoninhava. Algo de fora tinha se atravancado no meio do peito dela, algo maior que o corpo, que não cabia no corpo, muito menos no meio do peito e por isso produzia tanto sintoma, tanto sufoco, tanta dor no estômago.

O verbo é corpo, o signo é carne. Do que é feita uma memória? Quantas atualizações de memórias ela produzia com esses gestos atávicos, com essas sucessivas manifestações do incômodo que o encosto lhe produzia? Ela sofria por ela mesma e por todos os rejeitados. Tudo virava seu corpo, sua carne. Ela extravasava as dores dela no mundo, e as próprias dores do mundo no mundo, enquanto fazia esse trabalho, se tornava cada vez mais cigana.

O olho preto desenhado na mão. As saias cada vez mais compridas, as cores cada vez mais vibrantes. Uma cigana solta, sem eira nem beira, sem passado cigano, sem tradição ou compromisso, sem tenda, bando ou caravana. Uma nômade dolorida e mal educada, que assombrava com seu comportamento as tradições das pequenas cidades por onde passava. Uma cigana em processo produzindo uma dobra de mundo, única, incontrolável. Seria o ar da Transilvânia que promovia nela essa ciganeira toda? Seria a música a qual ficou exposta enquanto atravessava o país em busca de Milan, que ativava uma cigana escondida nela desde algum passado indeterminado, feito de imigrações, prisões, refúgios, diásporas?

Virar cigana, na contramão da história, sendo que os ciganos se adaptam a passos largos às regras dos gadjés (brancos). Já não podem nomadizar como antes, sempre foi difícil, mas agora tem o sistema de controle acirrado em cima deles, filhos na escola – eficaz forma de domesticação, sedentarização e implantação dos valores e cultura de um pais. Redes de internet, cada um com seu laptop, trabalhos, compromissos. Tecno-ciganos. Sedentarizados por força de uma modernidade que imprime outras formas de nomadismo no mundo, bem diferente das tradições ciganas para as quais, na maioria dos casos, “sonhar” significa “ver”. Quando o nomadismo pode significar traição ao território, as leituras de mãos, a adivinhação, as roupas alegres tudo isso fica meio pobre, meio superstição, visto como coisa de gente atrasada. Como ser cigano na contemporaneidade? Como devir cigano em tempos em que o nomadismo em tendas é visto como um maneirismo idiossincrático e fora de moda? Em tempos em que o nomadismo é esquadrinhado por projetos específicos e sempre a serviço de algum objetivo outro do que o próprio modo de vida dos ciganos?

Identificação, serialização, ordenação, manutenção, controle, pacificação, modificação das formas de organização, representação, encaixe nos sistemas de Direito, tudo isso vem junto com a relação com o Estado, como o sabem bem os povos indígenas, que ao mesmo tempo em que aos poucos ampliam seu poder de negociação e barganha, por outro lado se embranquecem nesse processo, adquirindo por exemplo, os modos de fazer política dos brancos. De modo que pergunto: como devir cigano em meio a todo esse processo civilizatório fominha?

Zigarina traz uma alternativa charmosa para essa questão, que nem de longe responde ao dilema dos povos ciganos, mas serve de suporte afetivo e conceitual. “Devir cigana”. Aciona em si o imaginário produzido por esse povo pelas terras do mundo, em toda sua estrutura mítica, do destino atrelado à sorte e ao azar, à alegria e à dor, à visão lúcida dos sonhos, da música, dança, trabalhos manuais, nomadismo. Zigarina performatiza tudo isso, inventa uma cigana em si, e libera a ciganería de todos.

Performatizar o desespero até o ponto de encontrar a medida certa, e no caso de Zigarina a medida certa não tinha nada a ver com seu passado franco-italiano classe média, mas sim com uma desmedida, uma improbabilidade. Grávida, sofrida, escandalosa, embrutecida, estrangeira, cigana, habitante das bordas.

Esse devir cigana, essas ritualizações do seu processo doloroso, essas manifestações performáticas do luto, reconfiguraram Zigarina. Comportamento redistribuído – seus gestos ganharam dimensões mais espaçosas, suas roupas largas lhe deram mais liberdade, ganhou apetite pela estrada, tornou sua desterritorialização seu ambiente natural. Sem terra, sem teto, sem direitos, cigana, toda politicamente incorreta: não corre atras do reconhecimento da paternidade, fuma e bebe grávida, sai a viajar com um completo desconhecido. Desaparece para o mundo de onde veio.

O mercenário é um super-macho rude, grosso, mas cuidadoso, que lhe convida a experimentar seu modo de vida, enquanto cuida daquela barriga que era de outro, não dele. Ele aceita mãe e filho, não sem performatizar também, convocando um grupo de músicos para tocar só pra ele quando a criança nasce. Dança e quebra as garrafas vazias na própria cabeça, o sangue escorre, a música cessa. Uma bodyart. Ele se envolve com Zigarina que está nessa situação limite, em processo de despossessão, ele se encanta por seu modo de ser, e especificamente, de sofrer. Imagino-o pensando: Zigarina, Zigarina, dolorida e linda. Uma cigana em processo não poderia abdicar da dor, de vivê-la, expressá-la, mantê-la próxima.

Talvez esse devir cigana esteja ligado a uma imanência atemporal, que cumpra uma função importante, que é a de não deixar morrer o tônus do cigano no mundo. Como se o devir cigano transcendesse a essência cigana, e fosse uma espécie de gosma invisível que se acessa com determinados gestos e ideias. Os ciganos também podem tornarem-se ciganos. Zigarina tornou-se cigana. Cigano aqui como povo, cultura, mas além disso, como percepção da vida, como perspectiva particular, cuja força se atualiza em diferentes formas de existência, para cumprir seu destino: fazer caminhar, produzir nomadismo, só com esse perpétuo movimento é que o eixo da terra continua girando. No final das contas, foi esse o trabalho de Zigarina, manter o eixo da terra em movimento.
(Outras Palavras)

Criança

Outro Dia da Criança é possível
Por
Lais Fontenelle Pereira

Ansiedade provocada pelo consumismo pode deformar pequenos psíquica e afetivamente. Feiras de Trocas são alternativa socializadora e divertida

Por Lais Fontenelle Pereira

No Brasil, convencionou-se considerar 12 de outubro como Dia das Crianças. A data foi oficializada em 1924 pelo presidente Arthur Bernardes, mas só décadas depois, por volta dos anos 1960, passou a ser comemorada. Foi quando a fábrica de brinquedos Estrela lançou a Semana do Bebê Robusto junto com a multinacional Johnson & Johnson. Desde então, o dia foi mercantilizado e passou a ser vivido pela grande maioria das famílias como um dever ao consumo. Escolhi este tema para abrir, em Outras Palavras, uma coluna que pretende estimular reflexão sobre a criança contemporânea e sua relação com consumo, mídias, família, escola e cidade.

Depois dessa breve história, uma pergunta: o que de fato honramos atualmente, a criança ou o consumo? Porque para homenagear a criança faria mais sentido escolher 20 de novembro, data da aprovação pela ONU da Declaração dos Direitos das Crianças.

As crianças de hoje diferem das de outros tempos – principalmente pelo lugar de destaque que ocupam na engrenagem da sociedade de consumo. Recebem status de consumidoras no mercado, antes mesmo de estarem aptas ao exercício pleno de sua cidadania. São diariamente bombardeadas, em todos os espaços de convivência, por mensagens publicitárias abusivas que vendem a falsa ideia da realização de sonhos, felicidade e inclusão social pela posse de mercadorias. Mas as crianças são seres em desenvolvimento psíquico, afetivo e cognitivo, e até mais ou menos os doze anos não têm capacidade crítica e abstração de pensamento formadas para retrabalhar essas mensagens persuasivas.

E aí está o problema: a construção da subjetividade da criança se dá também pela posse dos objetos que a cercam. Ela já nasce usando fraldas X, bebendo leite Z, brincando com bonecos Y. Desde muito cedo, passa a ser consumidora não só de objetos, mas também daquilo que eles representam. Outra pedagogia se instalou na vida de nossas crianças: a das mídias que falam diretamente com os pequenos, não só entretendo e informando, mas ditando valores e hábitos de consumo.

A criança brasileira é das que mais assistem TV no mundo: passa mais de 5 horas do dia sentada em frente à tela, em média (1). Em áreas de alta vulnerabilidade social e econômica, esse tempo chega a espantosas 9 horas por dia – o que ultrapassa, em muito, o tempo que ela passa no ambiente escolar: cerca de 3 horas e 15 minutos. O problema se agrava se lembrarmos a publicidade veiculada por essa mídia, que parece hoje mais formadora da subjetividade infantil do que a escola, com forte impacto no desenvolvimento saudável das crianças. Isso, além de contribuir para o grave e urgente problema do consumismo na infância.

O consumismo tornou-se um hábito característico de nossa sociedade. Mas, como nenhuma criança nasce consumista, vale uma reflexão sobre quais hábitos e valores estamos transmitindo às crianças contemporâneas, para que prefiram comprar a brincar. Valores que priorizam o ter em detrimento do ser, o individual acima do coletivo, a competição ao invés da cooperação. A infância não pode ser aprisionada nos falsos ideais de felicidade vendidos pela sociedade de consumo. Criança precisa de muito pouco para ser feliz: precisa de olhar, de palavra, de escuta e de acolhimento.

Convoco então pais e cuidadores a inverter, nesse 12 de Outubro, a lógica consumista dominante e a trocar o shopping pelo parque, o brinquedo pelo afeto. O dia das crianças pode ser comemorado de outras formas. Foi pensando nisso que o Instituto Alana teve a iniciativa, engajada e divertida, de convidar pessoas de todo o país a organizar Feiras de Troca de Brinquedos (em eventos simultâneos no sábado, 12 de Outubro), para gerar um movimento nacional de transformação do olhar à relação da criança com o consumo.

Uma Feira de Troca de Brinquedos é também uma boa experiência para repensarmos a forma como nós, adultos, consumimos. São espaços que convidam a outra socialização e ao exercício de desapego, e maneira de colocarmos em prática a economia solidária e o consumo colaborativo. Nelas, as crianças têm ainda a chance de exercitar a conquista por meio da negociação entre pares. E o mais bacana é que na troca os objetos perdem seu valor monetário – e ganham outros valores, simbólicos e afetivos.

Ao emprestar novos significados e usos a objetos antigos, ao afirmar que as relações sociais e afetivas não precisam ser pautadas pela compra, a experiência das Feiras de Troca torna-se enriquecedora para pais e para filhos. Trocar pode, sem dúvida, ser bem mais divertido que comprar. Que tal, então, se engajar nesse movimento para celebrar o dia das crianças de forma mais humana e sustentável? No site do Alana estão disponíveis materiais de apoio para ajudá-lo a organizar uma feira. Compartilhe a ideia e divirta-se!

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1. Painel Nacional de Televisores (IBOPE/2012) – crianças entre 4 e 11 anos, classe ABC.
(Outras Palavras)

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Allendeeeeeee!

Allendeeeeeeee!
 Chile,Nossa América


Cronopiando por Koldo Campos Sagaseta.

(Português/Español).

Porque não tem melhor antídoto contra a morte que a memória nem memória mais profunda e prezada que a que se partilha, uma feliz noite, a memória do Chile se fez carne, a carne se fez verbo e habitou entre nós.

Uma feliz noite a memória, depois de muitos anos de rondar os sonhos da infâmia, vestiu as suas mais belas virtudes, calçou suas mais amplas razões, e amparada à luz das sombras, evitou as grades do santuário onde o augusto ruminava a sua solidão e fracasso, se aproximando da mansão.

Uma cúmplice janela que tinha ficado aberta, solidária a tão benemérita causa, propiciou a entrada.

Alheios à sua presença, três guarda-costas cochilavam confiados nos jardins e outros o faziam na sala. A reparadora memória, de mãos dadas com todos os sonhos presos, proibidos, adiados, que seguiam sendo estrelas no céu chileno, alcançou o terceiro andar. Sabia qual era seu quarto porque era o único que continuava iluminado. Desde fazia muitos anos, um onze de setembro, tantos anos como o perseguia a memória para que não voltasse a conciliar o sono, o augusto nunca desligava a luz quando deitava. Temia esses fantasmas do passado que, apesar do tempo transcorrido, nunca tinha conseguido sepultar. Teria sido fácil para o mando do quartel, evadir bancos suíços os bens espoliados, que para a justiça fosse a sua impunidade norma de lei, tinha sido fácil para ele enterrar os ossos de seus crimes, até de dois em dois esclareceu alguma vez tê-los enterrado… mas não tem terra que cubra a memória.

A porta de seu quarto também quis se somar à celebração e, antes que a memória a empurrasse, deu a sua autorização.

O fedor dentro do quarto era insuportável, a inevitável consequência de sua vida e o presságio de um próximo final. Um uniforme de gala cujo peitilho exibia muitas canalhices, pendurado numa cadeira, muito perto da cama em que dormia. A memória, muito lentamente, se aproximou da cabeceira, acercou sua boca ao ouvido do augusto e, então, deslizou tímpano abaixo num longo sussurro a mágica palavra… Allendeeeeeee!

De manhã, o jornal El Mercurio chorava a notícia: “Morre o general Pinochet, enquanto dormia, de um ataque ao coração!

 (Baseado num relato do livro “Diário íntimo de Jack o Estripador” de Koldo Campos Sagaseta, ilustrado por J.Kalvellido).

Tradução: Projeto América Latina Palavra Viva.

11 do 9!

O 11 de setembro na América Latina

Salvador Allende

Publicado em 10/09/2013 por [*] Mário Augusto Jakobskind

O 11 de setembro da América Latina está completando 40 anos. Trata-se de uma data trágica que corresponde ao golpe comandado pelo general Augusto Pinochet que derrubou o Presidente constitucional Salvador Allende. Muito se denunciou sobre a participação dos Estados Unidos comprovada por inúmeros documentos oficiais demonstrando a culpa no cartório do então Secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger.

Nestes dias, documentos da chancelaria do Chile tornados públicos confirmam a participação também do Governo do então ditador de plantão Garrastazu Médici no golpe sangrento. A embaixada brasileira tornou-se inclusive num espaço de apoio aos golpistas. O chefe da representação diplomática, embaixador Câmara Canto, esteve de braços dados com militares que transformaram o Chile numa espécie de sucursal do inferno. Tanto assim que quando se confirmou a vitória dos golpistas, Câmara Canto comemorou com seus asseclas abrindo champagne.

Logo após o golpe, o Governo brasileiro colaborou financeiramente com a ditadura e assim sucessivamente. Mesmo antes do golpe, a ditadura civil militar vigente no Brasil respaldava os chilenos de extrema direita. Documentos tornados públicos no Chile comprovam a participação de brasileiros em apoio a grupos extremistas de direita como o Patria y Libertad.

Matéria do jornal O Estado de S. Paulo informa que em julho de 1973, o Brasil concedeu asilo político a Eduardo Roberto Keymer Aguirre, identificado como integrante do Patria y Libertad. A concessão ocorreu quatro dias depois que os extremistas assassinaram um ajudante de ordens de Allende, o capitão Arturo Araya Peeters.

René Dreifuss
Os vínculos da extrema direita chilena com extremistas brasileiros não se resumiram a este fato. Anos atrás, o cientista político René Dreifuss em seu livro “A Internacional capitalista” revelou que o jornalista Aristóteles Drummond, uma figura nefasta vinculada até hoje a antigos golpistas da pior espécie, fornecia armas para os extremistas do Patria y Libertad.

Há tempos este espaço democrático divulgou a informação veiculada no importante trabalho de pesquisa de René Dreifuss sobre o extremista brasileiro acusado inclusive de responsável pela explosão de uma bomba numa exposição soviética no Rio de Janeiro.

Pois bem, na reportagem do Estadão sobre os documentos divulgados nestes dias no Chile aparece novamente o nome de Aristóteles Drumond como um dos brasileiros que teria transportado recursos para os chilenos que preparavam o golpe contra Salvador Allende.

Aristóteles Drummond
Questionado pelo jornal paulista, Aristóteles Drummond preferiu não assumir diretamente a ajuda fornecida, mas a sua resposta é um reconhecimento da ajuda. Analisem bem o que disse este senhor que todo ano aparece no Clube Militar para comemorar o golpe que levou o Brasil a ingressar numa noite escura de 21 anos.

Eu não levei, mas teria levado. Tenho o sentimento de que os brasileiros amigos do Chile tenham (enviado dinheiro). Sou de classe média, mas, se corresse uma lista aqui para dar US$ 500 (a grupos anti-Allende), eu daria do meu bolso. Acho que o general Pinochet foi decisivo para evitar a criação de uma sucursal de Cuba no Pacífico. Pinochet salvou o Chile, assim como os militares salvaram o Brasil.

Aristóteles Drummond, que chegou a ocupar um cargo de confiança no governo Negrão de Lima na área de habitação, não foi perguntado pelo Estadão sobre a denúncia de René Dreifuss do fornecimento de armas ao gupo Patria y Libertad, mas se em algum momento for perguntado sobre o tema, provavelmente não confirmará integralmente a ação, mas o teor da reposta será nos moldes da que deu ao Estadão.

Tais fatos são importantes de serem conhecidos pela opinião pública e ajudarão também à Comissão da Verdade a concluir seu relatório sobre os trágicos acontecimentos ocorridos no Brasil depois do golpe de estado que derrubou o Presidente constitucional João Goulart.

O caso de Aristóteles Drumond é bastante emblemático e não será nenhuma surpresa se outros documentos a serem tornados públicos apontarem a participação de outros brasileiros que seguiram impunes ao longo do tempo. É também uma demonstração concreta segundo a qual o golpe no Brasil não foi apenas de conotação militar, mas civil também

Por estas e muitas outras não bastam apenas autocríticas de estilo marqueteiro, como fez recentemente O Globo, sobre o golpe de 64. No caso das Organizações Globo, que ao longo dos anos se transformaram numa espécie de diário oficial dos detentores de fato do poder, teria que acontecer um reconhecimento que além do “erro editorial” do apoio ao golpe, o grupo midiático então comandado por Roberto Marinho, como diria Leonel Brizola, engordou na estufa da ditadura.
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[*] Mário Augusto Jakobskind é correspondente no Brasil do semanário uruguaio Brecha. Foi colaborador do Pasquim, repórter da Folha de São Paulo e editor internacional da Tribuna da Imprensa. Integra o Conselho Editorial do semanário Brasil de Fato. É autor, entre outros livros, de América que não está na mídia, Dossiê Tim Lopes - Fantástico/IBOPE.
Enviado por Direto da Redação

Petrobrás

EUA, a Espionagem e Dilma: um enigma a decifrar     
Escrito por Paulo Metri  
Terça, 10 de Setembro de 2013





No momento atual, as decisões ou colocações de autoridades governamentais, em busca insana de satisfação do grande capital, se atropelam. Começaria lembrando que o ministro Edson Lobão acabou de decretar que o TCU não serve para nada e, portanto, sua decisão não precisa ser ouvida. De longa data, ele não ouve nenhuma reivindicação dos movimentos sociais, como bom representante da oligarquia maranhense.



A diretora Magda Chambriard, entrando na competição com o ministro, declara que a Petrobras não precisa ser beneficiada pela lei 12.351, que a impõe como operadora de todos os blocos do Pré-Sal com 30% de participação. Segundo ela, a Petrobras não tem “o problema número um das empresas de petróleo", ou seja, a dificuldade de acesso às reservas. Esta afirmação pode ter outra interpretação, pois a dificuldade de acesso para a Petrobras significa mais chance para as multinacionais ganharem maiores participações nos blocos.



Especulo que, se Aécio ou Serra ganhassem as eleições de 2014, só para efeito de raciocínio, Lobão e Chambriard poderiam pleitear continuar nos cargos e teriam total apoio das empresas estrangeiras. Mas não devemos cometer, mais uma vez, o erro de demonizar autoridades de baixo escalão, enquanto o mandante fica com a reputação ilesa. Não existe a hipótese de Lobão e Chambriard terem feito o que fizeram sem ter a aprovação da presidente Dilma.



Então, a pergunta certa é por que a presidente Dilma quer leiloar Libra a qualquer custo? O leilão é desinteressante para a sociedade brasileira, mas há uma razão para a presidente cancelar este leilão sem nenhuma análise adicional. Ela própria, a Petrobras e o Brasil foram espionados pelos Estados Unidos, para que, dentre outras razões, empresas norte-americanas ganhassem concorrências no Brasil, o que atinge cada brasileiro. Trata-se de um desrespeito só imaginado para nações inimigas em tempo de guerra.



A cientista social Ana Esther Ceceña, do Instituto de Investigaciones Económicas do México, em trabalho para o II Fórum Social Mundial, afirma que: “após pesquisar em documentos do ‘Department of Defense’ (DoD) americano, os interesses vitais dos Estados Unidos, em torno dos quais se organiza toda a atividade deste Departamento, compreendem: (1) proteger a soberania, o território e a população dos Estados Unidos; (2) evitar a emergência de hegemones ou coalizões regionais hostis; ...”.



Acredito que a ação de bisbilhotar dos norte-americanos visava também “evitar a emergência de hegemones”, no caso, de um hegemone ainda prematuro. Mas tenho a tese de que os próprios brasileiros estão desrespeitando o Brasil, porque não estão deixando claro para a governante brasileira que não gostaram das medidas protocolares tomadas. Eram necessárias medidas sérias, como suspender todos os leilões em que as empresas americanas estejam interessadas, reestatizar a Embratel, apressar o lançamento do satélite brasileiro e outras. Somos cidadãos de bem ou somos capachos subalternos? Formamos ou não formamos uma Nação? Se não agirmos com respeito a nós mesmos, não teremos condição de exigir que os Estados Unidos nos respeitem. E, sem respeito próprio, eles não irão nunca nos respeitar.



Isto tudo é óbvio. A presidente sabe de tudo e não fez o esperado, na minha visão. A grande pergunta é: por que? Você pode responder a esta pergunta, participando do jogo “Tentando decifrar Dilma”. Para tal, basta votar em uma das três hipóteses de reação da presidente aos acontecimentos recentes. Ou criar mais uma reação ainda não identificada.



Hipótese 1 – Para o bem estar social do brasileiro, não é tão importante entrar neste jogo de confronto. A questão da soberania é primordial, mas o mundo hoje é um barril de pólvora. Quando milhares morrem diariamente no Oriente Médio, vamos trazer para nós a discórdia e o confronto? O Brasil é um país de tradição não bélica. Não podemos tomar medidas drásticas contra os Estados Unidos, pois, afinal de contas, em que isto nos ajudaria neste momento? Vamos dar um crédito de confiança e esperar um pedido formal de desculpas. Tenho a garantia do presidente Obama de que ele cuidará pessoalmente de saber o que aconteceu e nos comunicará o resultado das averiguações. O importante é que a taxa de desemprego está baixa, a inflação está controlada, o câmbio, que andou assustando, voltou à normalidade, e os fundamentos macroeconômicos estão firmes. O PAC está caminhando. Os investimentos em infraestrutura ocorrerão com as concessões previstas. Isto criará um ambiente de negócios positivo no país. Também, as instituições democráticas estão funcionando, apesar de alguns percalços existirem.



Hipótese 2 – Este caso da espionagem dos Estados Unidos é seriíssimo e incompreensível. No entanto, sou uma governante responsável por 200 milhões de pessoas e não posso ter reações emocionais. Nossa correlação de forças, principalmente a militar, sugere reserva não amistosa. Entretanto, propostas surgidas, como o cancelamento do leilão de Libra e da compra de caças junto à empresa norte-americana, devem ser tomadas, até porque as concorrências foram contaminadas. Este ato norte-americano servirá para repensarmos toda nossa segurança e soberania nacional, e o posicionamento futuro no xadrez geopolítico mundial. É irrelevante um pedido formal de desculpas, até porque o ato é indesculpável. Enfim, repercussões no curto prazo serão só a suspensão das concorrências corrompidas. No médio prazo, devemos ter uma atuação mais soberana, buscando alianças de interesse para a nossa sociedade.



Hipótese 3 – O Brasil é um aliado estratégico dos Estados Unidos. O ocorrido não é o suficiente para arroubos nacionalistas, que irão comprometer a aliança histórica com nosso vizinho do norte. É claro que os Estados Unidos, visados como são, precisam se precaver, buscando se antecipar a ações terroristas. Vamos suplantar este momento de dificuldade, que é a coisa mais inteligente que se pode fazer. Recebi a informação do presidente Obama que houve excesso do pessoal de segurança deles e isto, em hipótese alguma, acontecerá de novo com o Brasil. Ele reconheceu que foi criado um sistema que fugiu ao controle do próprio presidente dos Estados Unidos. Ou seja, considero esta declaração como um pedido formal de desculpas. É bom lembrar que pedidos formais de desculpas são difíceis para qualquer país do mundo fazer. Não vou cancelar nenhum leilão ou compra internacional programada. Nossas empresas estão juntas em diversos empreendimentos, aliás, a contribuição das empresas deste país para nosso desenvolvimento é inegável. E precisamos continuar crescendo, sem abrir mão de qualquer contribuição, ainda mais sendo ela decisiva.



Paulo Metri, engenheiro, é conselheiro do Clube de Engenharia

Blog do autor: http://www.paulometri.blogspot.com.br/
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Última atualização em Terça, 10 de Setembro de 2013

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