Por que é possível desmilitarizar PMs
Proposta ganha adeptos, inclusive na própria polícia. Militarização sugere existência de “inimigo” e de postura bélica — o que nada tem a ver com segurança pública
Por Mauro Donato, no Diário do Centro do Mundo
O grito que anda presente nas ruas assusta leigos, que costumam reagir com a pergunta: “E na hora em que for assaltado, vou chamar quem?”, como se desmilitarizar significasse a extinção de policiamento ou da própria polícia. Não significa. Trata-se apenas de transferir esse “serviço” para uma polícia sem arquitetura militar.
Regida pelo artigo 144 da Constituição federal, a segurança pública destina à polícia civil apenas o poder de investigação e apuração de infrações penais (e levar os casos ao poder judiciário), ficando a cargo da polícia militar o policiamento ostensivo e “preservação da ordem pública”. Isso por si só já é problemático pois, evidentemente, uma polícia lava as mãos tão logo passa o bastão adiante.
Mas o ponto em questão é a cultura e a hierarquia às quais os militares são submetidos em seu treinamento, nos moldes das Forças Armadas. Militares são treinados e preparados para defender o país contra inimigos. É uma postura radicalmente diferente de quem vai lidar com o próprio povo. Nós não estamos em guerra. Sobretudo contra nós mesmos. E uma polícia “contra” o povo só faz sentido em ditaduras. Nós também não estamos em uma, estamos?
“A polícia não pode ser concebida para aniquilar o inimigo. O cidadão que está andando na rua, que está se manifestando, ou mesmo o cidadão que eventualmente está cometendo um crime, não é um inimigo. É um cidadão que tem direitos e esses direitos tem de ser respeitados”, disse Túlio Vianna, professor de Direito Penal na UFMG durante uma aula pública realizada em julho, no vão do Masp. O professor condena ainda a existência do código penal próprio da PM, aplicado para policiais que cometem delitos: “É muito cômodo você ter uma justiça que te julga pelos próprios pares”.
O tema é espinhudo até entre PMs. Um coronel da PM do Rio Grande do Norte entrou com uma representação contra um tenente que se posicionou à favor da desmilitarização, num post em seu perfil no Facebook. Sinal dos tempos, a Associação dos Cabos e Soldados da PM/RN saiu em defesa do tenente: “O Tenente Silva Neto teve o privilégio de em sua carreira militar ter sido soldado e, por isso, tem uma visão ampla dessa questão do militarismo e de suas implicações, hierarquizada na nossa corporação, (…) Por tudo aduzido acima, a Associação dos Cabos e Soldados expressa a sua mais sincera admiração pelo tenente Silva Neto, além de disponibilizar o núcleo jurídico da nossa entidade a fim de ofertar defesa frente à representação apresentada pelo Coronel PM WALTERLER”.
A hierarquia militar é propícia a abusos. Carlos Alberto Da Silva Mello é cabo da polícia em Minas Gerais e favorável à desmilitarização e postou no portal EBC (Empresa Brasil de Comunicação): “Bom dia, sou PM e vejo na desmilitarização o avanço da segurança pública no nosso país. Os coronéis são contra porque eles perderiam o poder ditatorial, acabaria os abusos de autoridade contra os praças, acabaria o corporativismo que existe nas PMs (…) Fim do militarismo, não o fim das polícias e sim (o fim) de um regime autoritário, desumano, arrogante, (…) A sociedade não toma conhecimento do que se passa dentro da PM. Todo cabo, soldado e sargentos são a favor da desmilitarização das PMs. O militarismo é o retrocesso (…) os abusos são constantes dentro dos cursos de formação de soldados.”
O ranço bélico que existe na PM está em superexposição desde junho. A falta de critérios para utilização de armas “não letais”, a gratuidade da violência, a truculência figadal, as táticas de emboscada. A atitude de colocar a tropa de choque, bombas de gás e balas de borracha ao lado de manifestantes já incita a tensão por seu caráter repressor. Em todas as ocasiões em que o exibicionismo da força militar esteve ausente, não houve bagunça, baderna, vandalismo, chamem como quiserem. Não é coincidência. Somado a atitudes autoritárias (e ilegais) como a detenção “para averiguação” que vem ocorrendo sistematicamente, temos um quadro que exige a revisão desse artigo 144 urgentemente.
O que se deseja nem é o desarmamento. Embora Londres possa sempre ser lembrada como exemplo de polícia desarmada, não fechemos os olhos em busca de utopia (mas há dados interessantes a se saber com relação a isso e que podem alimentar sonhos: uma pesquisa interna feita com os policiais britânicos, 82% deles disseram que não queriam passar a portar arma de fogo em serviço, mesmo quando cerca de 50% dos mesmos policiais disseram ter passado por situações que consideraram de “sério risco” nos 3 anos anteriores à pesquisa).
O que se deseja são uma ouvidoria e uma corregedoria minimamente eficientes e atuantes, de modo a pelo menos inibir declarações surreais como o já famoso “Fiz porque quis” proferida por um BOPE em Brasília, ou um alucinado policial sem identificação insultando diversos advogados no meio da rua, ou o sargento Alberto do Choque do RJ que ontem respondeu com um “Não te interessa” ao questionamento da falta de identificação, todos convictos da inconsequência de seus atos (se você não é do Rio de Janeiro, aconselho que acompanhe de perto o que tem se passado lá todas as noites).
É evidente que isso veio à tona desde que os filhos da classe média passaram a ser as vítimas. Na periferia é ancestral e sempre foi ignorado ou menosprezado. Portanto que se aproveite o momento. Os benefícios de uma polícia não militarizada refletiria em toda a sociedade.
Um dos caminhos seria a unificação das policias civil e militar, algo possível apenas através de uma emenda à constituição. Isso não se consegue da noite para o dia, portanto, quanto antes se começar a mexer nesse vespeiro, mais cedo teremos algum avanço. O que não é possível é ficar assistindo reintegrações de posse se tornarem espetáculos de carnificina com requintes de crueldade como vemos hoje. Já deu.
(Outras Palavras)
quinta-feira, 10 de outubro de 2013
quarta-feira, 9 de outubro de 2013
Amarildo
Matamos Amarildo
Quando a plateia vibrou com a cena final de Tropa de Elite, ela não percebeu que a escopeta estava voltada para ela
Quando plateia vibrou com a cena final de “Tropa de Elite”, autorizou barbárie. Só não percebeu que escopeta estava voltada para ela
Por Matheus Pichonelli, na Carta Capital
Quando o Capitão Nascimento, com o coturno na garganta do traficante “Baiano”, entregou a escopeta nas mãos do Soldado Mathias e determinou a execução do bandido com um balaço no rosto, as salas de cinema do Brasil vibraram como torcida em final de campeonato. Como em uma arquibancada, houve quem se levantasse e aplaudisse a cena de pé, algo inusitado para uma sessão de cinema. O Brasil que pedia direitos humanos para humanos direitos estava vingado.
José Padilha precisou praticamente desenhar, em Tropa de Elite 2, que aquela escopeta estava voltada, na verdade, para o rosto da plateia. Mas a plateia, em sua sanha punitiva, parecia incapaz de refletir e entender que a tortura, os sacos plásticos e a justiça por determinação própria eram a condenação, e não a redenção, de um país de tragédias cotidianas. Nos dois filmes, todos estavam de alguma forma envolvidos na criminalidade – corruptos e corruptores, produtores e consumidores, eleitos e eleitores – mas só alguns iam para o saco de tortura. As consequências dessa indignação seletiva estavam subentendidas, mas muitos não as captaram: nas camadas superficiais da opinião pública, o apelo a soluções simples é sempre tentador. (Em uma das cenas do segundo filme, Nascimento é aplaudido de pé ao chegar a um restaurante de bacanas após comandar o massacre em um presídio. Padilha mostrava ali que a que violência denunciada em Tropa de Elite não era só caso de policia, mas uma chaga aberta e diariamente cutucada por quem recorre, no discurso ou na ação, a soluções arbitrárias contra um caos legitimado).
É possível que este mesmo Brasil que transformou em heroi um personagem complexo e vacilante como o Capitão Nascimento, personagem interpretado por Wagner Moura, não tenha sequer franzido a testa, na vida real, pelo sumiço do ajudante de pedreiro Amarido de Souza, de 47 anos. Para quem não sabe, Amarildo desapareceu no dia 14 de julho após ser levado para a sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha. Ninguém sabe ninguém viu o que aconteceu desde então (repita-se: em uma unidade PACIFICADORA). Isso porque as câmeras de monitoramento da região, estranhamente, não registraram a movimentação. Segundo um inquérito aberto pela Divisão de Homicídios da Polícia Civil fluminense (e encaminhado ao Ministério Público do Rio), Amarildo, que era epilético, foi torturado, morto e seu corpo, ocultado. Foram indiciados dez policiais militares lotados à época na UPP, entre eles o ex-comandante da unidade, major Edson dos Santos.
Na Justiça, todos terão direito a se defender, e é bom que assim seja. Direito que o ajudante de pedreiro não chegou a vislumbrar – seu erro fatal, segundo a investigação, foi ter se negado a fornecer informações sobre traficantes do morro, a quem supostamente preparava churrascos. Sua versão da história será sempre um mistério: no método de depoimento informal aplicado supostamente pelos PMs – com direito a choques elétricos, de acordo com o inquérito – a verdade dos fatos é a primeira a morrer sufocada.
Amarildo não foi a primeira e fatalmente não será a última vítima. Nem da violência nem do descaso nem da ignorância. Os aplausos da plateia abobada de Tropa de Elite são reforçados todos os dias, inclusive quando o governador diz: “E daí? Antigamente havia muito mais Amarildos do que hoje”. Tanto Amarildo como o governador não são pontos fora da curva. São uma legião, porque são muitos.
No país das indignações seletivas, a aceitação da tortura é a manifestação inequívoca de um estado de guerra e barbárie permanente no qual a convivência humana é simplesmente inviável. No filme 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Stanley Kubrick criou uma alegoria para ilustrar a origem deste estado: quando um grupo de macacos identifica em uma ossada um arsenal de guerra e provoca uma dissidência; com os ossos na mão, passam a agir como base na violência, na coação, na briga pelo território, pelo privilégio, pela dominação de uns pelos outros. É quando os animais se humanizam.
Ao longo dos anos, esta humanidade barbarizada caminhou em direção ao que se chama civilização, em que pese o fato de alguns dos maiores morticínios terem sido praticados nos séculos XX e XXI (a morte por gás sarin não é menos dolorosa que um golpe de machado). Em outros termos, significa que entre um símio e outro há uma regra de conduta, baseada em lei, que impede o uso dessa arma para a imposição da força. Essa lei, em tese, é o que evita o aniquilamento humano. Inevitavelmente, esta cortina frágil é rasgada todos os dias por quem não consegue identificar a humanidade no outro. Voltamos um pouco ao estágio pré-civilizatório toda vez que testemunhamos um crime motivado por ciúmes, por território, por controle, por motivo fútil, por necessidade. Mas, em vez de distribuir ossos e oficializar o aniquilamento, optamos por criar o Estado, a legalidade e armamos a polícia, a detentora do monopólio legítimo da violência. Mais do que ninguém, ela é a força responsável por impedir que os símios espalhados pelo mundo ajam conforme seus instintos – e sejam punidos em casos de infração. Tem as armas para isso.
Quando aplaudimos a tortura policial, no entanto, a mensagem passada aos nossos supostos guardiões é que esta arma pode ser usada como bem entenderem, e não em favor de uma paz possível prevista em lei. É como se a plateia exultante de Tropa de Elite, iguais aos macacos de 2001, dissessem: “danem-se as leis, somos todos neandertais”.
O apelo à tortura como consequência da segurança é, portanto, a confissão e a aceitação de uma incapacidade ancestral. Em vez de segurança, o que ela produz é pânico: aceitamos que a polícia se comporte não como o agente público a nos proteger de símios ensandecidos com ossos na mão, mas exatamente igual aos animais retratados no filme.
Nesses termos, o estado completo de vulnerabilidade está criado. Ontem, mais precisamente em 14 de julho de 2013, foi a vez de Amarildo. Amanhã pode ser eu. Ou você. Enquanto aplaudimos as soluções arbitrárias, que aniquila tanto o bandido como o inocente, é a sorte, e não a lei, o elemento a impedir que um animal armado (fardado ou não) com arma na mão, pelo simples fato de acordar num belo dia de mau humor, coloque nossas cabeças em um saco plástico e nos sufoque até a morte.
(Outras Palavras)
Quando a plateia vibrou com a cena final de Tropa de Elite, ela não percebeu que a escopeta estava voltada para ela
Quando plateia vibrou com a cena final de “Tropa de Elite”, autorizou barbárie. Só não percebeu que escopeta estava voltada para ela
Por Matheus Pichonelli, na Carta Capital
Quando o Capitão Nascimento, com o coturno na garganta do traficante “Baiano”, entregou a escopeta nas mãos do Soldado Mathias e determinou a execução do bandido com um balaço no rosto, as salas de cinema do Brasil vibraram como torcida em final de campeonato. Como em uma arquibancada, houve quem se levantasse e aplaudisse a cena de pé, algo inusitado para uma sessão de cinema. O Brasil que pedia direitos humanos para humanos direitos estava vingado.
José Padilha precisou praticamente desenhar, em Tropa de Elite 2, que aquela escopeta estava voltada, na verdade, para o rosto da plateia. Mas a plateia, em sua sanha punitiva, parecia incapaz de refletir e entender que a tortura, os sacos plásticos e a justiça por determinação própria eram a condenação, e não a redenção, de um país de tragédias cotidianas. Nos dois filmes, todos estavam de alguma forma envolvidos na criminalidade – corruptos e corruptores, produtores e consumidores, eleitos e eleitores – mas só alguns iam para o saco de tortura. As consequências dessa indignação seletiva estavam subentendidas, mas muitos não as captaram: nas camadas superficiais da opinião pública, o apelo a soluções simples é sempre tentador. (Em uma das cenas do segundo filme, Nascimento é aplaudido de pé ao chegar a um restaurante de bacanas após comandar o massacre em um presídio. Padilha mostrava ali que a que violência denunciada em Tropa de Elite não era só caso de policia, mas uma chaga aberta e diariamente cutucada por quem recorre, no discurso ou na ação, a soluções arbitrárias contra um caos legitimado).
É possível que este mesmo Brasil que transformou em heroi um personagem complexo e vacilante como o Capitão Nascimento, personagem interpretado por Wagner Moura, não tenha sequer franzido a testa, na vida real, pelo sumiço do ajudante de pedreiro Amarido de Souza, de 47 anos. Para quem não sabe, Amarildo desapareceu no dia 14 de julho após ser levado para a sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha. Ninguém sabe ninguém viu o que aconteceu desde então (repita-se: em uma unidade PACIFICADORA). Isso porque as câmeras de monitoramento da região, estranhamente, não registraram a movimentação. Segundo um inquérito aberto pela Divisão de Homicídios da Polícia Civil fluminense (e encaminhado ao Ministério Público do Rio), Amarildo, que era epilético, foi torturado, morto e seu corpo, ocultado. Foram indiciados dez policiais militares lotados à época na UPP, entre eles o ex-comandante da unidade, major Edson dos Santos.
Na Justiça, todos terão direito a se defender, e é bom que assim seja. Direito que o ajudante de pedreiro não chegou a vislumbrar – seu erro fatal, segundo a investigação, foi ter se negado a fornecer informações sobre traficantes do morro, a quem supostamente preparava churrascos. Sua versão da história será sempre um mistério: no método de depoimento informal aplicado supostamente pelos PMs – com direito a choques elétricos, de acordo com o inquérito – a verdade dos fatos é a primeira a morrer sufocada.
Amarildo não foi a primeira e fatalmente não será a última vítima. Nem da violência nem do descaso nem da ignorância. Os aplausos da plateia abobada de Tropa de Elite são reforçados todos os dias, inclusive quando o governador diz: “E daí? Antigamente havia muito mais Amarildos do que hoje”. Tanto Amarildo como o governador não são pontos fora da curva. São uma legião, porque são muitos.
No país das indignações seletivas, a aceitação da tortura é a manifestação inequívoca de um estado de guerra e barbárie permanente no qual a convivência humana é simplesmente inviável. No filme 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Stanley Kubrick criou uma alegoria para ilustrar a origem deste estado: quando um grupo de macacos identifica em uma ossada um arsenal de guerra e provoca uma dissidência; com os ossos na mão, passam a agir como base na violência, na coação, na briga pelo território, pelo privilégio, pela dominação de uns pelos outros. É quando os animais se humanizam.
Ao longo dos anos, esta humanidade barbarizada caminhou em direção ao que se chama civilização, em que pese o fato de alguns dos maiores morticínios terem sido praticados nos séculos XX e XXI (a morte por gás sarin não é menos dolorosa que um golpe de machado). Em outros termos, significa que entre um símio e outro há uma regra de conduta, baseada em lei, que impede o uso dessa arma para a imposição da força. Essa lei, em tese, é o que evita o aniquilamento humano. Inevitavelmente, esta cortina frágil é rasgada todos os dias por quem não consegue identificar a humanidade no outro. Voltamos um pouco ao estágio pré-civilizatório toda vez que testemunhamos um crime motivado por ciúmes, por território, por controle, por motivo fútil, por necessidade. Mas, em vez de distribuir ossos e oficializar o aniquilamento, optamos por criar o Estado, a legalidade e armamos a polícia, a detentora do monopólio legítimo da violência. Mais do que ninguém, ela é a força responsável por impedir que os símios espalhados pelo mundo ajam conforme seus instintos – e sejam punidos em casos de infração. Tem as armas para isso.
Quando aplaudimos a tortura policial, no entanto, a mensagem passada aos nossos supostos guardiões é que esta arma pode ser usada como bem entenderem, e não em favor de uma paz possível prevista em lei. É como se a plateia exultante de Tropa de Elite, iguais aos macacos de 2001, dissessem: “danem-se as leis, somos todos neandertais”.
O apelo à tortura como consequência da segurança é, portanto, a confissão e a aceitação de uma incapacidade ancestral. Em vez de segurança, o que ela produz é pânico: aceitamos que a polícia se comporte não como o agente público a nos proteger de símios ensandecidos com ossos na mão, mas exatamente igual aos animais retratados no filme.
Nesses termos, o estado completo de vulnerabilidade está criado. Ontem, mais precisamente em 14 de julho de 2013, foi a vez de Amarildo. Amanhã pode ser eu. Ou você. Enquanto aplaudimos as soluções arbitrárias, que aniquila tanto o bandido como o inocente, é a sorte, e não a lei, o elemento a impedir que um animal armado (fardado ou não) com arma na mão, pelo simples fato de acordar num belo dia de mau humor, coloque nossas cabeças em um saco plástico e nos sufoque até a morte.
(Outras Palavras)
Literalizando
Fêmea: Zigarina, Zigarina, dolorida e linda
Por
Fabiane M. Borges
“Ela queria fugir da Europa, fazer o caminho oposto do resto da civilização. Incivilizar. Involuir. Precarizar. Tornar-se outra coisa”
Por Fabiane Borges
“Há um ditado cigano que diz ‘Vivemos porque
caminhamos’, e outro que se refere à importância
de sua função: ‘Enquanto o cigano nômade
continuar caminhando, o eixo da terra continuará
girando’”.
Valeria Sanchez – “Devir Cigano” 2006
Zigarina é uma italiana que se apaixona em Paris por um músico que precisa voltar para a Transilvânia, por não ter conseguido o visto de permanência na França. Ela parte com uma amiga dois meses depois, atrás dele. Ela o encontra, mas ele não a quer mais. Ela não diz que está grávida. Tudo indica que não quer uma situação de negociação em relação a isso, pois o que importa é a reciprocidade da sua paixão. Daí começa sua saga de ritos de despossessão, já que declara que está com o coração possuído.
Chamo esses ritos de performances, porque uma resolução estética é dada para uma tensão interna, biográfica. Ou seja, existe uma tensão que é desobstruída pelo improviso performático. Essas performances são feitas por ela na busca de dar vazão à dor que sentia diante da impossibilidade do amor.
Performance 1 – Ela vai para a rua durante as comemorações da festa de Herodes, o que mandou cortar a cabeça de João Batista. Ela atravessa a procissão festiva na contramão, atirando-se nos braços das pessoas, gritando e chorando, a louca da festa pagã. Milhares de pessoas nas ruas e ela tão sozinha. A imagem da solidão povoada, da estranheza absoluta, ela própria João Batista, com a cabeça pedente entre ombros desconhecidos.
Performance 2 – Ela vai para uma festa e dança bêbada quebrando pratos. Erotizada, tira a parte de cima do vestido e dança como uma estrangeira dança, com suas botas de couro e vestido negro. Toda europeia, quebra os pratos com vontade, dando sentido para o gesto tradicional do país, o despedaçamento dos vidros. Ela se quebra prato, ela estilhaço e barulho. Sensual e quebradeira. Os pratos que levam a cabeça de João Batista, a sua cabeça, tornando-se cacos. Ela é a mais pagã das pagãs, e a que mais tem fé.
Peformance 3 – Ela abandona sua melhor amiga numa fronteira, parte com uma menina de rua, entra em um devir nômade, decai a uma situação de miséria e dificuldade. Uma criança mendicante — era a sua própria condição. Vira criança e não tem mais nada. A criança diz: Acorde, Acorde. Ela responde: Por favor, não me olhe desse jeito, e tapa os olhos da menina. Zigarina menina, perdida, num pais estrangeiro, mendiga.
Performance 4 – Ela sai de um carro aos gritos, escandalosa e louca, corre para dentro de uma floresta outonal até cair no chão, se abraça no chão e tenta se tapar com folhas secas e barro, tenta se colocar na terra, dentro da terra. Se exaure e por fim desmaia. Ela desfragmentada, querendo o consolo da terra fria, tenta algum pacto. Escandalosa e zonza, Zigarina folhas secas. A Terra como o fim e o princípio, enterrar-se, morrer-se de si. Quer ser outra coisa, quer ser floresta nua, quer se enterrar no chão. A Terra amante e mãe, ela criança e mendiga.
Performance 5 – Vai a uma igreja ortodoxa cristã e faz um rito com velas e leite. É banhada de cima a baixo enquanto passa pelo exorcismo litúrgico e sincrético. Ela está disposta a passar por aquilo, e acredita nos que estão conduzindo o rito. Ela crente, afeita a qualquer fanatismo. Qualquer fanatismo que tire a obsessão do seu peito. É intensa e urgente, ela tem pressa, fanática e demente, ela se entrega, discreta. O mercenário que a levou, não paga pelo rito de cura, ela também acredita nele.
Performance 6 – Ela parte com o mercenário enquanto sua barriga cresce e ela encontra nele um novo amor.
Zigarina, Zigarina, dolorida e linda. Capaz de qualquer coisa. Ela está fodida e mal paga, está arrasada, por isso quer cortar a cabeça, quebrar pratos, virar menina de rua, se enterrar na terra debaixo das folhas secas, fanatizar. A barriga crescendo fruto de um amor tão infeliz parece criar um trato entre ela e a Terra daquele homem. Ela queria viver o multiculturalismo a transmusicalidade, a industrialização ainda precária, a não tão premente tecnologia da Transilvânia? Ela queria fugir da Europa, fazer o caminho oposto do resto da civilização. Incivilizar. Involuir. Precarizar. Tornar-se outra coisa. Ela estava de luto pelo fim do amor, pelo fim das matas, pelo fim das águas, pelo fim da Terra.
Me impressionam esses ritos performáticos irrefletidos e escandalosos de Zigarina, as manifestações da dor e o processo de expurgação da paixão que lhe possuía, que lhe endemoninhava. Algo de fora tinha se atravancado no meio do peito dela, algo maior que o corpo, que não cabia no corpo, muito menos no meio do peito e por isso produzia tanto sintoma, tanto sufoco, tanta dor no estômago.
O verbo é corpo, o signo é carne. Do que é feita uma memória? Quantas atualizações de memórias ela produzia com esses gestos atávicos, com essas sucessivas manifestações do incômodo que o encosto lhe produzia? Ela sofria por ela mesma e por todos os rejeitados. Tudo virava seu corpo, sua carne. Ela extravasava as dores dela no mundo, e as próprias dores do mundo no mundo, enquanto fazia esse trabalho, se tornava cada vez mais cigana.
O olho preto desenhado na mão. As saias cada vez mais compridas, as cores cada vez mais vibrantes. Uma cigana solta, sem eira nem beira, sem passado cigano, sem tradição ou compromisso, sem tenda, bando ou caravana. Uma nômade dolorida e mal educada, que assombrava com seu comportamento as tradições das pequenas cidades por onde passava. Uma cigana em processo produzindo uma dobra de mundo, única, incontrolável. Seria o ar da Transilvânia que promovia nela essa ciganeira toda? Seria a música a qual ficou exposta enquanto atravessava o país em busca de Milan, que ativava uma cigana escondida nela desde algum passado indeterminado, feito de imigrações, prisões, refúgios, diásporas?
Virar cigana, na contramão da história, sendo que os ciganos se adaptam a passos largos às regras dos gadjés (brancos). Já não podem nomadizar como antes, sempre foi difícil, mas agora tem o sistema de controle acirrado em cima deles, filhos na escola – eficaz forma de domesticação, sedentarização e implantação dos valores e cultura de um pais. Redes de internet, cada um com seu laptop, trabalhos, compromissos. Tecno-ciganos. Sedentarizados por força de uma modernidade que imprime outras formas de nomadismo no mundo, bem diferente das tradições ciganas para as quais, na maioria dos casos, “sonhar” significa “ver”. Quando o nomadismo pode significar traição ao território, as leituras de mãos, a adivinhação, as roupas alegres tudo isso fica meio pobre, meio superstição, visto como coisa de gente atrasada. Como ser cigano na contemporaneidade? Como devir cigano em tempos em que o nomadismo em tendas é visto como um maneirismo idiossincrático e fora de moda? Em tempos em que o nomadismo é esquadrinhado por projetos específicos e sempre a serviço de algum objetivo outro do que o próprio modo de vida dos ciganos?
Identificação, serialização, ordenação, manutenção, controle, pacificação, modificação das formas de organização, representação, encaixe nos sistemas de Direito, tudo isso vem junto com a relação com o Estado, como o sabem bem os povos indígenas, que ao mesmo tempo em que aos poucos ampliam seu poder de negociação e barganha, por outro lado se embranquecem nesse processo, adquirindo por exemplo, os modos de fazer política dos brancos. De modo que pergunto: como devir cigano em meio a todo esse processo civilizatório fominha?
Zigarina traz uma alternativa charmosa para essa questão, que nem de longe responde ao dilema dos povos ciganos, mas serve de suporte afetivo e conceitual. “Devir cigana”. Aciona em si o imaginário produzido por esse povo pelas terras do mundo, em toda sua estrutura mítica, do destino atrelado à sorte e ao azar, à alegria e à dor, à visão lúcida dos sonhos, da música, dança, trabalhos manuais, nomadismo. Zigarina performatiza tudo isso, inventa uma cigana em si, e libera a ciganería de todos.
Performatizar o desespero até o ponto de encontrar a medida certa, e no caso de Zigarina a medida certa não tinha nada a ver com seu passado franco-italiano classe média, mas sim com uma desmedida, uma improbabilidade. Grávida, sofrida, escandalosa, embrutecida, estrangeira, cigana, habitante das bordas.
Esse devir cigana, essas ritualizações do seu processo doloroso, essas manifestações performáticas do luto, reconfiguraram Zigarina. Comportamento redistribuído – seus gestos ganharam dimensões mais espaçosas, suas roupas largas lhe deram mais liberdade, ganhou apetite pela estrada, tornou sua desterritorialização seu ambiente natural. Sem terra, sem teto, sem direitos, cigana, toda politicamente incorreta: não corre atras do reconhecimento da paternidade, fuma e bebe grávida, sai a viajar com um completo desconhecido. Desaparece para o mundo de onde veio.
O mercenário é um super-macho rude, grosso, mas cuidadoso, que lhe convida a experimentar seu modo de vida, enquanto cuida daquela barriga que era de outro, não dele. Ele aceita mãe e filho, não sem performatizar também, convocando um grupo de músicos para tocar só pra ele quando a criança nasce. Dança e quebra as garrafas vazias na própria cabeça, o sangue escorre, a música cessa. Uma bodyart. Ele se envolve com Zigarina que está nessa situação limite, em processo de despossessão, ele se encanta por seu modo de ser, e especificamente, de sofrer. Imagino-o pensando: Zigarina, Zigarina, dolorida e linda. Uma cigana em processo não poderia abdicar da dor, de vivê-la, expressá-la, mantê-la próxima.
Talvez esse devir cigana esteja ligado a uma imanência atemporal, que cumpra uma função importante, que é a de não deixar morrer o tônus do cigano no mundo. Como se o devir cigano transcendesse a essência cigana, e fosse uma espécie de gosma invisível que se acessa com determinados gestos e ideias. Os ciganos também podem tornarem-se ciganos. Zigarina tornou-se cigana. Cigano aqui como povo, cultura, mas além disso, como percepção da vida, como perspectiva particular, cuja força se atualiza em diferentes formas de existência, para cumprir seu destino: fazer caminhar, produzir nomadismo, só com esse perpétuo movimento é que o eixo da terra continua girando. No final das contas, foi esse o trabalho de Zigarina, manter o eixo da terra em movimento.
(Outras Palavras)
Por
Fabiane M. Borges
“Ela queria fugir da Europa, fazer o caminho oposto do resto da civilização. Incivilizar. Involuir. Precarizar. Tornar-se outra coisa”
Por Fabiane Borges
“Há um ditado cigano que diz ‘Vivemos porque
caminhamos’, e outro que se refere à importância
de sua função: ‘Enquanto o cigano nômade
continuar caminhando, o eixo da terra continuará
girando’”.
Valeria Sanchez – “Devir Cigano” 2006
Zigarina é uma italiana que se apaixona em Paris por um músico que precisa voltar para a Transilvânia, por não ter conseguido o visto de permanência na França. Ela parte com uma amiga dois meses depois, atrás dele. Ela o encontra, mas ele não a quer mais. Ela não diz que está grávida. Tudo indica que não quer uma situação de negociação em relação a isso, pois o que importa é a reciprocidade da sua paixão. Daí começa sua saga de ritos de despossessão, já que declara que está com o coração possuído.
Chamo esses ritos de performances, porque uma resolução estética é dada para uma tensão interna, biográfica. Ou seja, existe uma tensão que é desobstruída pelo improviso performático. Essas performances são feitas por ela na busca de dar vazão à dor que sentia diante da impossibilidade do amor.
Performance 1 – Ela vai para a rua durante as comemorações da festa de Herodes, o que mandou cortar a cabeça de João Batista. Ela atravessa a procissão festiva na contramão, atirando-se nos braços das pessoas, gritando e chorando, a louca da festa pagã. Milhares de pessoas nas ruas e ela tão sozinha. A imagem da solidão povoada, da estranheza absoluta, ela própria João Batista, com a cabeça pedente entre ombros desconhecidos.
Performance 2 – Ela vai para uma festa e dança bêbada quebrando pratos. Erotizada, tira a parte de cima do vestido e dança como uma estrangeira dança, com suas botas de couro e vestido negro. Toda europeia, quebra os pratos com vontade, dando sentido para o gesto tradicional do país, o despedaçamento dos vidros. Ela se quebra prato, ela estilhaço e barulho. Sensual e quebradeira. Os pratos que levam a cabeça de João Batista, a sua cabeça, tornando-se cacos. Ela é a mais pagã das pagãs, e a que mais tem fé.
Peformance 3 – Ela abandona sua melhor amiga numa fronteira, parte com uma menina de rua, entra em um devir nômade, decai a uma situação de miséria e dificuldade. Uma criança mendicante — era a sua própria condição. Vira criança e não tem mais nada. A criança diz: Acorde, Acorde. Ela responde: Por favor, não me olhe desse jeito, e tapa os olhos da menina. Zigarina menina, perdida, num pais estrangeiro, mendiga.
Performance 4 – Ela sai de um carro aos gritos, escandalosa e louca, corre para dentro de uma floresta outonal até cair no chão, se abraça no chão e tenta se tapar com folhas secas e barro, tenta se colocar na terra, dentro da terra. Se exaure e por fim desmaia. Ela desfragmentada, querendo o consolo da terra fria, tenta algum pacto. Escandalosa e zonza, Zigarina folhas secas. A Terra como o fim e o princípio, enterrar-se, morrer-se de si. Quer ser outra coisa, quer ser floresta nua, quer se enterrar no chão. A Terra amante e mãe, ela criança e mendiga.
Performance 5 – Vai a uma igreja ortodoxa cristã e faz um rito com velas e leite. É banhada de cima a baixo enquanto passa pelo exorcismo litúrgico e sincrético. Ela está disposta a passar por aquilo, e acredita nos que estão conduzindo o rito. Ela crente, afeita a qualquer fanatismo. Qualquer fanatismo que tire a obsessão do seu peito. É intensa e urgente, ela tem pressa, fanática e demente, ela se entrega, discreta. O mercenário que a levou, não paga pelo rito de cura, ela também acredita nele.
Performance 6 – Ela parte com o mercenário enquanto sua barriga cresce e ela encontra nele um novo amor.
Zigarina, Zigarina, dolorida e linda. Capaz de qualquer coisa. Ela está fodida e mal paga, está arrasada, por isso quer cortar a cabeça, quebrar pratos, virar menina de rua, se enterrar na terra debaixo das folhas secas, fanatizar. A barriga crescendo fruto de um amor tão infeliz parece criar um trato entre ela e a Terra daquele homem. Ela queria viver o multiculturalismo a transmusicalidade, a industrialização ainda precária, a não tão premente tecnologia da Transilvânia? Ela queria fugir da Europa, fazer o caminho oposto do resto da civilização. Incivilizar. Involuir. Precarizar. Tornar-se outra coisa. Ela estava de luto pelo fim do amor, pelo fim das matas, pelo fim das águas, pelo fim da Terra.
Me impressionam esses ritos performáticos irrefletidos e escandalosos de Zigarina, as manifestações da dor e o processo de expurgação da paixão que lhe possuía, que lhe endemoninhava. Algo de fora tinha se atravancado no meio do peito dela, algo maior que o corpo, que não cabia no corpo, muito menos no meio do peito e por isso produzia tanto sintoma, tanto sufoco, tanta dor no estômago.
O verbo é corpo, o signo é carne. Do que é feita uma memória? Quantas atualizações de memórias ela produzia com esses gestos atávicos, com essas sucessivas manifestações do incômodo que o encosto lhe produzia? Ela sofria por ela mesma e por todos os rejeitados. Tudo virava seu corpo, sua carne. Ela extravasava as dores dela no mundo, e as próprias dores do mundo no mundo, enquanto fazia esse trabalho, se tornava cada vez mais cigana.
O olho preto desenhado na mão. As saias cada vez mais compridas, as cores cada vez mais vibrantes. Uma cigana solta, sem eira nem beira, sem passado cigano, sem tradição ou compromisso, sem tenda, bando ou caravana. Uma nômade dolorida e mal educada, que assombrava com seu comportamento as tradições das pequenas cidades por onde passava. Uma cigana em processo produzindo uma dobra de mundo, única, incontrolável. Seria o ar da Transilvânia que promovia nela essa ciganeira toda? Seria a música a qual ficou exposta enquanto atravessava o país em busca de Milan, que ativava uma cigana escondida nela desde algum passado indeterminado, feito de imigrações, prisões, refúgios, diásporas?
Virar cigana, na contramão da história, sendo que os ciganos se adaptam a passos largos às regras dos gadjés (brancos). Já não podem nomadizar como antes, sempre foi difícil, mas agora tem o sistema de controle acirrado em cima deles, filhos na escola – eficaz forma de domesticação, sedentarização e implantação dos valores e cultura de um pais. Redes de internet, cada um com seu laptop, trabalhos, compromissos. Tecno-ciganos. Sedentarizados por força de uma modernidade que imprime outras formas de nomadismo no mundo, bem diferente das tradições ciganas para as quais, na maioria dos casos, “sonhar” significa “ver”. Quando o nomadismo pode significar traição ao território, as leituras de mãos, a adivinhação, as roupas alegres tudo isso fica meio pobre, meio superstição, visto como coisa de gente atrasada. Como ser cigano na contemporaneidade? Como devir cigano em tempos em que o nomadismo em tendas é visto como um maneirismo idiossincrático e fora de moda? Em tempos em que o nomadismo é esquadrinhado por projetos específicos e sempre a serviço de algum objetivo outro do que o próprio modo de vida dos ciganos?
Identificação, serialização, ordenação, manutenção, controle, pacificação, modificação das formas de organização, representação, encaixe nos sistemas de Direito, tudo isso vem junto com a relação com o Estado, como o sabem bem os povos indígenas, que ao mesmo tempo em que aos poucos ampliam seu poder de negociação e barganha, por outro lado se embranquecem nesse processo, adquirindo por exemplo, os modos de fazer política dos brancos. De modo que pergunto: como devir cigano em meio a todo esse processo civilizatório fominha?
Zigarina traz uma alternativa charmosa para essa questão, que nem de longe responde ao dilema dos povos ciganos, mas serve de suporte afetivo e conceitual. “Devir cigana”. Aciona em si o imaginário produzido por esse povo pelas terras do mundo, em toda sua estrutura mítica, do destino atrelado à sorte e ao azar, à alegria e à dor, à visão lúcida dos sonhos, da música, dança, trabalhos manuais, nomadismo. Zigarina performatiza tudo isso, inventa uma cigana em si, e libera a ciganería de todos.
Performatizar o desespero até o ponto de encontrar a medida certa, e no caso de Zigarina a medida certa não tinha nada a ver com seu passado franco-italiano classe média, mas sim com uma desmedida, uma improbabilidade. Grávida, sofrida, escandalosa, embrutecida, estrangeira, cigana, habitante das bordas.
Esse devir cigana, essas ritualizações do seu processo doloroso, essas manifestações performáticas do luto, reconfiguraram Zigarina. Comportamento redistribuído – seus gestos ganharam dimensões mais espaçosas, suas roupas largas lhe deram mais liberdade, ganhou apetite pela estrada, tornou sua desterritorialização seu ambiente natural. Sem terra, sem teto, sem direitos, cigana, toda politicamente incorreta: não corre atras do reconhecimento da paternidade, fuma e bebe grávida, sai a viajar com um completo desconhecido. Desaparece para o mundo de onde veio.
O mercenário é um super-macho rude, grosso, mas cuidadoso, que lhe convida a experimentar seu modo de vida, enquanto cuida daquela barriga que era de outro, não dele. Ele aceita mãe e filho, não sem performatizar também, convocando um grupo de músicos para tocar só pra ele quando a criança nasce. Dança e quebra as garrafas vazias na própria cabeça, o sangue escorre, a música cessa. Uma bodyart. Ele se envolve com Zigarina que está nessa situação limite, em processo de despossessão, ele se encanta por seu modo de ser, e especificamente, de sofrer. Imagino-o pensando: Zigarina, Zigarina, dolorida e linda. Uma cigana em processo não poderia abdicar da dor, de vivê-la, expressá-la, mantê-la próxima.
Talvez esse devir cigana esteja ligado a uma imanência atemporal, que cumpra uma função importante, que é a de não deixar morrer o tônus do cigano no mundo. Como se o devir cigano transcendesse a essência cigana, e fosse uma espécie de gosma invisível que se acessa com determinados gestos e ideias. Os ciganos também podem tornarem-se ciganos. Zigarina tornou-se cigana. Cigano aqui como povo, cultura, mas além disso, como percepção da vida, como perspectiva particular, cuja força se atualiza em diferentes formas de existência, para cumprir seu destino: fazer caminhar, produzir nomadismo, só com esse perpétuo movimento é que o eixo da terra continua girando. No final das contas, foi esse o trabalho de Zigarina, manter o eixo da terra em movimento.
(Outras Palavras)
Criança
Outro Dia da Criança é possível
Por
Lais Fontenelle Pereira
Ansiedade provocada pelo consumismo pode deformar pequenos psíquica e afetivamente. Feiras de Trocas são alternativa socializadora e divertida
Por Lais Fontenelle Pereira
No Brasil, convencionou-se considerar 12 de outubro como Dia das Crianças. A data foi oficializada em 1924 pelo presidente Arthur Bernardes, mas só décadas depois, por volta dos anos 1960, passou a ser comemorada. Foi quando a fábrica de brinquedos Estrela lançou a Semana do Bebê Robusto junto com a multinacional Johnson & Johnson. Desde então, o dia foi mercantilizado e passou a ser vivido pela grande maioria das famílias como um dever ao consumo. Escolhi este tema para abrir, em Outras Palavras, uma coluna que pretende estimular reflexão sobre a criança contemporânea e sua relação com consumo, mídias, família, escola e cidade.
Depois dessa breve história, uma pergunta: o que de fato honramos atualmente, a criança ou o consumo? Porque para homenagear a criança faria mais sentido escolher 20 de novembro, data da aprovação pela ONU da Declaração dos Direitos das Crianças.
As crianças de hoje diferem das de outros tempos – principalmente pelo lugar de destaque que ocupam na engrenagem da sociedade de consumo. Recebem status de consumidoras no mercado, antes mesmo de estarem aptas ao exercício pleno de sua cidadania. São diariamente bombardeadas, em todos os espaços de convivência, por mensagens publicitárias abusivas que vendem a falsa ideia da realização de sonhos, felicidade e inclusão social pela posse de mercadorias. Mas as crianças são seres em desenvolvimento psíquico, afetivo e cognitivo, e até mais ou menos os doze anos não têm capacidade crítica e abstração de pensamento formadas para retrabalhar essas mensagens persuasivas.
E aí está o problema: a construção da subjetividade da criança se dá também pela posse dos objetos que a cercam. Ela já nasce usando fraldas X, bebendo leite Z, brincando com bonecos Y. Desde muito cedo, passa a ser consumidora não só de objetos, mas também daquilo que eles representam. Outra pedagogia se instalou na vida de nossas crianças: a das mídias que falam diretamente com os pequenos, não só entretendo e informando, mas ditando valores e hábitos de consumo.
A criança brasileira é das que mais assistem TV no mundo: passa mais de 5 horas do dia sentada em frente à tela, em média (1). Em áreas de alta vulnerabilidade social e econômica, esse tempo chega a espantosas 9 horas por dia – o que ultrapassa, em muito, o tempo que ela passa no ambiente escolar: cerca de 3 horas e 15 minutos. O problema se agrava se lembrarmos a publicidade veiculada por essa mídia, que parece hoje mais formadora da subjetividade infantil do que a escola, com forte impacto no desenvolvimento saudável das crianças. Isso, além de contribuir para o grave e urgente problema do consumismo na infância.
O consumismo tornou-se um hábito característico de nossa sociedade. Mas, como nenhuma criança nasce consumista, vale uma reflexão sobre quais hábitos e valores estamos transmitindo às crianças contemporâneas, para que prefiram comprar a brincar. Valores que priorizam o ter em detrimento do ser, o individual acima do coletivo, a competição ao invés da cooperação. A infância não pode ser aprisionada nos falsos ideais de felicidade vendidos pela sociedade de consumo. Criança precisa de muito pouco para ser feliz: precisa de olhar, de palavra, de escuta e de acolhimento.
Convoco então pais e cuidadores a inverter, nesse 12 de Outubro, a lógica consumista dominante e a trocar o shopping pelo parque, o brinquedo pelo afeto. O dia das crianças pode ser comemorado de outras formas. Foi pensando nisso que o Instituto Alana teve a iniciativa, engajada e divertida, de convidar pessoas de todo o país a organizar Feiras de Troca de Brinquedos (em eventos simultâneos no sábado, 12 de Outubro), para gerar um movimento nacional de transformação do olhar à relação da criança com o consumo.
Uma Feira de Troca de Brinquedos é também uma boa experiência para repensarmos a forma como nós, adultos, consumimos. São espaços que convidam a outra socialização e ao exercício de desapego, e maneira de colocarmos em prática a economia solidária e o consumo colaborativo. Nelas, as crianças têm ainda a chance de exercitar a conquista por meio da negociação entre pares. E o mais bacana é que na troca os objetos perdem seu valor monetário – e ganham outros valores, simbólicos e afetivos.
Ao emprestar novos significados e usos a objetos antigos, ao afirmar que as relações sociais e afetivas não precisam ser pautadas pela compra, a experiência das Feiras de Troca torna-se enriquecedora para pais e para filhos. Trocar pode, sem dúvida, ser bem mais divertido que comprar. Que tal, então, se engajar nesse movimento para celebrar o dia das crianças de forma mais humana e sustentável? No site do Alana estão disponíveis materiais de apoio para ajudá-lo a organizar uma feira. Compartilhe a ideia e divirta-se!
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1. Painel Nacional de Televisores (IBOPE/2012) – crianças entre 4 e 11 anos, classe ABC.
(Outras Palavras)
Por
Ansiedade provocada pelo consumismo pode deformar pequenos psíquica e afetivamente. Feiras de Trocas são alternativa socializadora e divertida
Por Lais Fontenelle Pereira
No Brasil, convencionou-se considerar 12 de outubro como Dia das Crianças. A data foi oficializada em 1924 pelo presidente Arthur Bernardes, mas só décadas depois, por volta dos anos 1960, passou a ser comemorada. Foi quando a fábrica de brinquedos Estrela lançou a Semana do Bebê Robusto junto com a multinacional Johnson & Johnson. Desde então, o dia foi mercantilizado e passou a ser vivido pela grande maioria das famílias como um dever ao consumo. Escolhi este tema para abrir, em Outras Palavras, uma coluna que pretende estimular reflexão sobre a criança contemporânea e sua relação com consumo, mídias, família, escola e cidade.
Depois dessa breve história, uma pergunta: o que de fato honramos atualmente, a criança ou o consumo? Porque para homenagear a criança faria mais sentido escolher 20 de novembro, data da aprovação pela ONU da Declaração dos Direitos das Crianças.
As crianças de hoje diferem das de outros tempos – principalmente pelo lugar de destaque que ocupam na engrenagem da sociedade de consumo. Recebem status de consumidoras no mercado, antes mesmo de estarem aptas ao exercício pleno de sua cidadania. São diariamente bombardeadas, em todos os espaços de convivência, por mensagens publicitárias abusivas que vendem a falsa ideia da realização de sonhos, felicidade e inclusão social pela posse de mercadorias. Mas as crianças são seres em desenvolvimento psíquico, afetivo e cognitivo, e até mais ou menos os doze anos não têm capacidade crítica e abstração de pensamento formadas para retrabalhar essas mensagens persuasivas.
E aí está o problema: a construção da subjetividade da criança se dá também pela posse dos objetos que a cercam. Ela já nasce usando fraldas X, bebendo leite Z, brincando com bonecos Y. Desde muito cedo, passa a ser consumidora não só de objetos, mas também daquilo que eles representam. Outra pedagogia se instalou na vida de nossas crianças: a das mídias que falam diretamente com os pequenos, não só entretendo e informando, mas ditando valores e hábitos de consumo.
A criança brasileira é das que mais assistem TV no mundo: passa mais de 5 horas do dia sentada em frente à tela, em média (1). Em áreas de alta vulnerabilidade social e econômica, esse tempo chega a espantosas 9 horas por dia – o que ultrapassa, em muito, o tempo que ela passa no ambiente escolar: cerca de 3 horas e 15 minutos. O problema se agrava se lembrarmos a publicidade veiculada por essa mídia, que parece hoje mais formadora da subjetividade infantil do que a escola, com forte impacto no desenvolvimento saudável das crianças. Isso, além de contribuir para o grave e urgente problema do consumismo na infância.
O consumismo tornou-se um hábito característico de nossa sociedade. Mas, como nenhuma criança nasce consumista, vale uma reflexão sobre quais hábitos e valores estamos transmitindo às crianças contemporâneas, para que prefiram comprar a brincar. Valores que priorizam o ter em detrimento do ser, o individual acima do coletivo, a competição ao invés da cooperação. A infância não pode ser aprisionada nos falsos ideais de felicidade vendidos pela sociedade de consumo. Criança precisa de muito pouco para ser feliz: precisa de olhar, de palavra, de escuta e de acolhimento.
Convoco então pais e cuidadores a inverter, nesse 12 de Outubro, a lógica consumista dominante e a trocar o shopping pelo parque, o brinquedo pelo afeto. O dia das crianças pode ser comemorado de outras formas. Foi pensando nisso que o Instituto Alana teve a iniciativa, engajada e divertida, de convidar pessoas de todo o país a organizar Feiras de Troca de Brinquedos (em eventos simultâneos no sábado, 12 de Outubro), para gerar um movimento nacional de transformação do olhar à relação da criança com o consumo.
Uma Feira de Troca de Brinquedos é também uma boa experiência para repensarmos a forma como nós, adultos, consumimos. São espaços que convidam a outra socialização e ao exercício de desapego, e maneira de colocarmos em prática a economia solidária e o consumo colaborativo. Nelas, as crianças têm ainda a chance de exercitar a conquista por meio da negociação entre pares. E o mais bacana é que na troca os objetos perdem seu valor monetário – e ganham outros valores, simbólicos e afetivos.
Ao emprestar novos significados e usos a objetos antigos, ao afirmar que as relações sociais e afetivas não precisam ser pautadas pela compra, a experiência das Feiras de Troca torna-se enriquecedora para pais e para filhos. Trocar pode, sem dúvida, ser bem mais divertido que comprar. Que tal, então, se engajar nesse movimento para celebrar o dia das crianças de forma mais humana e sustentável? No site do Alana estão disponíveis materiais de apoio para ajudá-lo a organizar uma feira. Compartilhe a ideia e divirta-se!
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1. Painel Nacional de Televisores (IBOPE/2012) – crianças entre 4 e 11 anos, classe ABC.
(Outras Palavras)
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